"Quinta-Crônica" #6: Saudade
Uma das tantas palavras da língua portuguesa que muda de significado conforme a gente envelhece.
Quando se é criança saudade é a palavra que os adultos usam para te explicar aquela sensação de falta momentânea que algo te faz, mas depois que se cresce saudade ganha contornos impensáveis, incha como um hematoma maltratado, desdobra-se em incontáveis dimensões, algumas antes inimagináveis, outras surreais até mesmo para o agora, muitas incompreensíveis até para o mais experiente dos viventes.
Saudade deixa de ser a palavra para definir aquela falta que faz o pai que foi trabalhar de manhã e só voltará a noite, ou mesmo daquele amiguinho da escola que só reencontraremos no dia seguinte, da mãe que foi visitar a Avó doente e só volta no fim de semana, da tia que só vem visitar nas férias de julho. Chega uma hora que isso deixa de ser chamado de saudade.
Saudade agora tem organizações mais complexas, nomes e sobrenomes, tem endereços, paisagens, sons, cheiros, texturas, motivos, cores ora vibrantes ora opacas, tem humores e sabores, dias bons e dias ruins, verdades e mentiras, dores, movimentos, sorrisos e olhares, magoas e alegrias, sins e nãos.
Saudade agora é a tia Cida que não resistiu ao segundo derrame, é o tio Milton que nem era tão legal ou tão presente mas sempre que vinha trazia um refrigerante e agora nunca mais virá pois o diabetes o levou pela última vez, é tia Iolanda que ensinou a fazer aquele mousse de maracujá dias antes do infarto, é tio Chico de fala engraçada e sorriso frouxo que o câncer judiou antes de levar, é o mendigo da praça que sempre contava uma piada para quem quer que estivesse esperando o ônibus na esquina da escola e no dia que não apareceu para contar todo mundo entendeu que ele tinha perdido a briga para a bebida, é o vizinho sempre meio bêbado mas sempre com ar brincalhão que vivia caindo da bicicleta e um dia caiu debaixo de um caminhão e nunca mais.
Saudade agora é o almoço na casa da vó com primos de diferentes idades entretidos em diferentes atividades e os tios olhando tudo ao redor e lembrando do tempo quando eles eram aquelas crianças, jovens e semi-adultos, é o copo de leite quente servido pela mãe de manhã, é o ônibus da escola dobrando a mesma esquina todo dia, é o Hino Nacional no pátio em posição de sentido, é o inocente primeiro amor, a devastadora primeira desilusão, é a correria com os amigos no intervalo, é o desenho animado depois da escola, é o campinho de terra batida e a bola de capotão surrada subindo alto no sol quente das duas da tarde, risos e sorrisos, ensaios de brigas por uma falta exagerada, é o sorvete do Zé Sorveteiro debaixo da mangueira no pós-jogo, é a aula de português que a professora fazia rir enquanto ensinava e a gente aprendia sem achar que estava estudando, é a aula de geografia em que a professora não sabia e tentava nos ensinar, é a maçante tarefa de casa que devia ser apresentada para mãe antes de receber a liberdade para brincar lá fora.
Saudade agora é a chuva de fim de tarde lá no sítio da Vó Luíza, o cheiro da terra molhada, o banho quente depois do dia todo de bicicleta com os primos, é a sinfonia das cigarras no sítio do tio Tonho durante as férias de dezembro, o banho de rio, o vira-lata Feijoada que um dia apareceu com tumor e precisou ser sacrificado, o porquinho da índia que fugiu da gaiola no mesmo dia em que chegou e nunca mais foi visto.
Saudade é a fachada azul e branca do mercado do seu João que o pai frequentava religiosamente todo começo de mês e a criança ia junto, ganhar uns docinhos, é o macarrão com carne da vó que abraçava apertado quando se ia visitar e hoje não está mais lá naquela cadeira de balanço na frente da TV, é a voz do pai acompanhando desafinado o canto na missa, é o barulho do motor do Chevette em que o pai ensinou o filho a dirigir, o cheiro do estofamento velho, o resmungar do pai quando o carro morria, é o abraçar da mãe, hoje tão longe lá no interior, é o sonho ilusório da capital, hoje presídio de ideias de sonhos de infâncias.
Saudade é o primeiro ano da faculdade, momento ainda de sonhos, novos horizontes e mil possibilidades, é a primeira namorada séria, de falar em casamento e tudo, é a primeira entrevista de emprego, a camisa mal passada, é o por do sol visto do último andar do campus, é o grupo de amigos da hora do intervalo, o do fim de semana, é a primeira vez que pagou algo com dinheiro próprio, suado em seu próprio serviço, é a alegria da primeira vez numa sala de cinema, é a primeira vez que levou os pais até a praia, é a segunda ida que contou apenas com a mãe, pois o pai já tinha ido se encontrar com tia Iolanda e os outros, é a formatura de beca e capelo, é o primeiro emprego na área, a primeira desilusão profissional, é a primeira euforia em morar sozinho, manter aluguel e contas em dia, dias de sonhos no início, muita luta e apertos depois.
Saudade é aquele aglomerado de pequenas ilusões passadas que quando confrontadas com a realidade tornam-se pesadelos. Saudade é aquela sensação que fica no lugar da lembrança dos rostos já ausentes, das vozes já caladas, dos momentos já vividos e sempre com essa impressão de pouco aproveitados. Saudade é a eterna sensação de não ter passado o ontem como devia. Saudade é um rabisco com tinta permanente: não se entende bem mas doí, não se pode apagar por mais que se rabisque outras coisas por cima. Saudade é um texto cheio de grandes dores jorradas de uma vez como cachoeira, pois se fossem contadas em pequenas gotas como do conta-gotas seria dor dilacerante.
Que lindo.
saudade é cumulativa, só cresce.