"Quinta-Crônica" #7: As irmãs
Para hoje, um texto escrito em meados de 2022-2023 é resgatado da lixeira, retrabalhado e vira Quinta-Crônica.
Irmã I
Ela encara as fotos sobre a mesa, tem o olhar que atravessa os papéis coloridos, atravessa o tampo de vidro da mesa de centro, atravessa o piso debaixo de nossos pés, atravessa os oito andares deste prédio e para no estacionamento, para no Civic estacionado na vaga ao lado da minha. Eu penso em dizer a ela que estou ali, vou ajudar, que ela não precisa entrar naquele estado, não precisa ficar nele, não precisa ficar com ele. Lanço meu corpo para frente sobre a mesa de centro, sobre as fotos. O olhar dela se move, das fotos sobe para o meu rosto, mas não me atravessa, me analisa, olhos nos olhos. Ah não. Conheço esse olhar, ela tem desde criança. A primeira vez que vi esse olhar foi quando nossa mãe morreu, o carro que vinha na direção contraria perdeu o controle, a batida foi frontal, nossa tia teve ferimentos leves, mas nossa mãe morreu na hora, coisas daquelas que não se explica pela física dos homens. A notícia do acidente chegou primeiro em mim, chorei por horas, tinha quanto?, catorze, quinze anos. Ela tinha a mesma idade, nascemos na mesma noite. Quando ficou sabendo perguntou como foi, o que tinha acontecido exatamente, que horas. Nosso tio, desolado, contou até os detalhes. Ela ficou triste, olhos vermelhos, foi fazer suas orações, mas não a vi chorando, nem no velório, nem quando desceram o caixão na cova debaixo daquela garoa fina que despencou naquele treze de agosto. Não sei onde aprendeu ou de quem herdou, mas ela tem uma resistência contra catástrofes, compreende todos os acontecimentos injustos da vida de forma muito equilibrada. Foi assim com nossa mãe, foi assim quando perdeu o primeiro filho ainda no ventre, está sendo assim agora enquanto encara as fotos na mesa. Ela é uma mulher blindada, me disse uma amiga esses tempos atrás. Não sei se é possível algo assim. Quero perguntar a ela o que está passando dentro de sua cabeça nesse momento, mas não consigo, esse olhar não me deixa formular palavra nenhuma. Ela simplesmente me olha, absorvendo a informação visual contida nas fotos, resistindo à catástrofe.
Irmã II
Quando tínhamos oito ou nove anos e brincávamos de esconde-esconde na fazenda de papai, você sempre me achava, irmãzinha. Eu nunca consegui te achar, mas você nunca me deixou escapar. Eu sempre confiava em você, sempre confiava que você não ia olhar enquanto eu saia feito doida procurando um esconderijo, mas um dia olhei para trás enquanto corria para longe e vi você olhando por baixo dos braços cruzados e escorados no poste. Você sempre me perguntou porque eu nunca mais quis brincar de esconder... Se não posso confiar em minha própria irmã, na pessoa que dividiu a mesma barriga que eu... Por que vou confiar em qualquer outra coisa que a vida coloque ao meu lado? Felicidade? O que é a felicidade se tudo é finito? O que é a morte senão o destino de qualquer coisa que vive? Por que esperar que a vida seja longa e feliz se o destino do vivo é a morte e a morte é tristeza? Casei com esse homem das fotos por convenção da sociedade. Por que eu deveria esperar a fidelidade dele? Por que ele deveria esperar a minha? Casou apenas por uma herança, que hoje vemos que nem é tão grande coisa assim. O que você quer que eu diga diante dessas fotos, irmãzinha? Quer me ver chorar? Espernear? Quebrar coisas como nas novelas? Espero que não me pergunte o que eu quero fazer agora, pois não vai gostar da resposta. Hoje é sexta-feira, dia do meu cinema particular. Quero que você vá embora para que eu possa ver os filmes antigos que tanto amo, hoje é dia de Todos os homens do presidente.
será que ela já sabia?