I
Só quem já desistiu de alguma coisa na vida - um sonho, um trabalho, uma faculdade, um amor, um livro, um passeio, uma receita, uma caminhada matinal -, sabe o que é aquele sentimento que fica atravessado na garganta nos minutos, horas ou dias antes da desistência se consumar, e também só essa mesma pessoa sabe o sentimento que vem depois da desistência consumada, aquele que brota no exato momento depois que você tem total consciência de que atingiu o ponto de não retorno: desistência confirmada e inalterável.
Essa semana senti isso. É incômodo e é libertador ao mesmo tempo, é mágico e assustador ao mesmo tempo. É sentimento.
II
Só quem já chegou em uma certa altura da vida entende aquela dúvida que pesa no momento em que decidimos começar alguma coisa nova - um sonho, um trabalho, uma faculdade, um amor, um livro, um passeio, uma receita, uma caminhada matinal -, sabe o que é aquele sentimento que fica atravessado na garganta nos minutos, horas ou dias antes da decisão se firmar totalmente e se tornar imparável, e também só essa mesma pessoa sabe o sentimento que vem depois da decisão tomada ser irreversível, aquele que brota no exato momento depois que você tem total consciência de que atingiu o ponto de não retorno: vou começar, mesmo nessa altura da vida.
Essa semana passei por isso. É incômodo para as pessoas ao nosso redor que podem não falar, mas nos olham com dúvida “ele não vai conseguir, não tem mais idade pra isso” e é libertador para nós, não tão mágico como quando se é jovem, e talvez mais assustador do que quando se é jovem, mas agora você é mais corajoso porque já não é jovem.
III
Só quem continua - um sonho, um trabalho, uma faculdade, um amor, um livro, um passeio, uma receita, uma caminhada matinal -, mesmo depois de já ter passado de certa altura da vida, sabe o quanto é difícil, desafiador e ao mesmo tempo mais fácil e prazeroso que antes, quando se era jovem.
Há tempos passo por isso e parar não é algo que já cheguei a cogitar, mesmo que o sonho seja muito caro, o trabalho desgastante, as faculdades caras e desgastantes, os amores cada vez mais líquidos, quase gasosos, o livro mais complicado de ser publicado e encontrar público considerável, o passeio mais solitário, a receita mais enjoativa e a caminhada matinal mais dolorida. Continuo.
IV
Só quem depois de muito já vivido sabe o preço de ainda carregar um sonho de infância, adolescência, o que seja, desde que seja antigo - um sonho, um trabalho, uma faculdade, um amor, um livro, um passeio, uma receita, uma caminhada matinal -, só quem ainda o carrega sabe o preço, o peso, a medida, diâmetro, espessura, comprimento, largura, altura, maneiras possíveis de se transportar, como armazenar, onde esconder quando precisar, para quem mostrar, para quem não mostrar.
De continuar acreditando em sonhos, entendo bem. Uma vida inteiro de entendimento.
V
Só quem rabisca sabe o valor da palavra certa, da frase bem feita, da oração bem construída, do período bem organizado. Mas só quem rabisca muito, sobre tudo, o tempo todo, rabisca até sem ter o que e onde rabiscar, rabisca mentalmente, só esses sabem o valor da palavra errada, da frase mal feita, da oração mal construída, do período mal organizado.
Disso, às vezes entendo bem, às vezes entendo mal. Por isso rabisco.
VI
Só quem apaga sabe o valor do excluir definitivamente - um sonho, um trabalho, uma faculdade, um amor, um livro, um passeio, uma receita, uma caminhada matinal - sabe a sensação de se estar perdido, de ter perdido: desistências, começos, continuanças, sonhos, rabiscos, páginas, linhas, sorrisos, abraços, tempos, dinheiros, vidas. Só quem apaga sabe o valor de uma lixeira, da possibilidade da recuperação, do poder voltar.
Disso, sinto falta: lixeiras.
Bastidores:
Muita coisa acontece numa semana. As coisas dessa semana que levaram até esse texto se resumem em:
Desisti de um trabalho que até pagava bem, mas não era pra mim, a vida pedia outras coisas.
Comecei uma nova faculdade, uma das coisas que a vida pedia.
Continuo escrevendo, é isso que faz o coração bater, a vida pedir.
Ainda sonho, é o que mais é meu.
Por isso rabisco, pelo livro e pelo sonho.
Apaguei mais um projeto que não vingou, mas este está ali, salvo na lixeira, esperando, quem sabe uma altura da vida vindoura.
Maravilha de texto, inspirador por uma das razões que só quem chega ao final da postagem consegue apreciar.
É preciso ter coragem para desistir e recomeçar novamente, mas somente os que se dispoem às mudanças viverão com mais intensidade as escolhas (difíceis da vida), porque são inteiramente suas, só suas. E isso é libertador.